Geraldo Magela
Beraldo Bezerra morreu em uma tarde fria e cinzenta de junho, no ano de 1888, pouco lembrado pelos críticos e nem um pouco notado pelos leitores mais exigentes. Foi um escritor medíocre, é verdade, mas tinha estilo, conforme atestou mais tarde em sua lápide o pesquisador e descobridor de talentos H.W da Silveira em 1907. O abnegado Silveira, após remexer os entulhos de manuscritos deixados por Bezerra, e desprezados pelos parentes mais próximos, descobriu no meio de um monte de escritos e narrativas imprestáveis algo que lhe deixou bastante excitado. Uma narrativa intitulada “Os falsos profetas”, que mesclava fatos da história humana com picaretagens diversas praticadas por alguns personagens, que poderiam realmente ter existido, ou não. Além de curiosas, essas narrativas eram bastante divertidas e possuíam uma dose de ironia que impressionou o incansável pesquisador, que as divulgou sob a forma de um livreto. O livreto foi descoberto em um sebo por Birdes Fontaine, pseudônimo à procura de um autor, que nas linhas abaixo dá ciência do fato aos nobres membros da presente banca examinadora.
“ Os falsos profetas, creio eu, foram apenas oito em toda a extensão da humanidade:
Dico Zunindo, 910 – 1010.
Dico Zunindo viveu exatos 100 anos e foi o mais rebelde dos profetas, optando por contrariar as sagradas escrituras invisíveis e preferindo viver entre os povos bárbaros que habitavam as planícies da Alta Mongólia.
Dico levava uma vida desregrada. Participava dos combates sangrentos entre as tribos bárbaras, matando e saqueando sem nenhum escrúpulo. Possuía um harém de cinquenta esposas e cinquenta amantes. O número 50 para ele era sagrado. Tanto que construiu cinquenta ídolos de barro e os espalhou pelas imensas planícies da sua terra.
Todos os ídolos tinham a sua fisionomia, pois ele se considerava, não apenas um profeta, mas sim uma espécie de deus. Apesar dos seus delírios passou a velhice pregando para os seus netos sobre a existência de um semideus, que teria morrido numa cruz.
Ao falar da cruz, ele sempre desembainhava as suas duas espadas ainda manchadas de um sangue antigo e as cruzava, numa espécie de desenho gótico, berrando palavras incompreensíveis. As crianças riam muito e ele então dormia feliz.
Ypsolum, 1277 – 1297.
O profeta Ypsolum aproveitou pouco a sua vida terrena.
Segundo as antigas escrituras, nunca confirmadas pela Igreja Oficial, ele morreu com tenros e puros 20 anos atravessado pelas impiedosas espadas dos infiéis quando tentava roubar na antiga Jerusalém uma réplica do Santo Graal , durante uma das suas peregrinações.
Conforme as suas visões de homem santo, a mencionada réplica seria a mais perfeita e a mais “verdadeira” de todas as centenas de perdoáveis falsificações do cálice sagrado espalhadas pelo mundo conhecido.
Ypsolum morreu casto e imaculado. Não chegou a se deitar com nenhuma mulher. Por isso, logo após o seu enterro, algumas mulheres vestidas somente com uma tira de pano negro e com as faces cobertas por véus violaram o seu túmulo e deceparam o seu órgão genital virgem.
Embalsamaram-no utilizando essências aromáticas e o guardaram em local tão secreto que jamais foi encontrado.
Beto Belezura, 1300 – 1600.
Profeta sem pátria, sem eira nem beira, Beto Belezura viveu no auge das Grandes Navegações. Possuía uma temida caravela, denominada de Ave de Rapina dos Mares Desconhecidos, armada com cem canhões, que ele utilizava para transportar escravos aprisionados ou comprados nas ilhas distantes localizadas no Continente Negro.
Depois de enfrentar tempestades terríveis e os navios piratas que infestavam os mares, ele despejava os seus escravos numa ilhota pequena localizada no Mar dos Destinos Perdidos, na costa norte, onde ele erguera um templo sinistro, que possuía um gigantesco altar de sacrifícios, onde milhares de homens e mulheres foram imolados a um deus do qual nunca ouviram falar.
Belezura era um guerreiro destemido e audaz que viveu por três séculos. Os povos antigos contavam que a cada cem anos ele trocava de pele, igual às serpentes. Daí o segredo do seu rejuvenescimento. Apesar da sua fama de belicoso, era um homem atraente. Possuía dezenas de escravas sexuais, todas elas negras e belas, escolhidas a dedo para satisfazer os seus desejos.
Conseguira o título de profeta depois de ter profetizado que o mundo passaria por um período de cem anos de fome, miséria e de peste. Tal profecia nunca foi testemunhada por ninguém, mas não havia nenhum louco vivo para desmentir o sanguinário e falso profeta.
Dizem as lendas que ele foi morto a machadadas por um escravo rebelde quando se preparava para se hibernar e trocar de pele pela quarta vez.
Do contrário, teria atravessado os séculos.
Delirado, 333 – 337.
O profeta Delirado, segundo as antigas escrituras jamais encontradas por algum ser mortal, mas que foram devidamente decoradas por Zé do Pastéu, poeta errante que atravessara os sete desertos da antiga África cantando as suas canções incompreensíveis, viveu somente quatro anos mortais. Isto, na literatura dos pagãos, significava pelo menos uns quarenta anos metafísicos. Mas em apenas quatro anos mortais ninguém conseguiria mesmo fazer nada de realmente útil e concreto. Apenas delirar.
E foi o que ocorreu com este pobre e anônimo profeta precoce, que morreu de uma febre terrível que o fez delirar durante quarenta dias e quarenta noites. Durante todo este período, o profeta balbuciou palavras estranhas e ao dar o seu último suspiro repetiu por várias vezes:
- O deserto, o deserto, o deserto...
Zé Confuso, 612 – 700 .
Este talvez tenha sido o mais esquisito de todos os santos homens da velha terra. Em todos os pergaminhos encontrados pelos arqueólogos e pesquisadores ingleses nas gigantescas pirâmides circulares do deserto de Io, as referências a esse sacerdote eram simplesmente confusas.
Num sarcófago modesto, a múmia de Zé Confuso descansou em paz durante séculos, até ser encontrada por um estagiário curioso que penetrou nos subterrâneos de uma das pirâmides para dar uma transadinha rápida com uma das assistentes da equipe de arqueologia da Universidade de Hera.
No sarcófago estavam diversas inscrições que, após serem traduzidas, resultaram em uma conhecida história confusa e que provocou diversas dúvidas a respeito da sua autenticidade entre os pesquisadores.
Com um grupo de historiadores defendendo a sua autenticidade e outro grupo de cientistas afirmando que tudo aquilo não passava de um blefe egípcio, a coisa esquentou e virou uma guerra.
Após profundos e morrinhentos debates, teses sonolentas e pinimbas das mais variadas espécies, o sarcófago de Zé Confuso foi lacrado definitivamente pela Vigilância Sanitária e não se falou nunca mais naquela confusa descoberta, fruto de um acaso.
Zacarias Iscariol, 1600 – 1689.
Zaccarias Iscariol foi o principal tradutor das sagradas escrituras invisíveis, que só quem possuía o coração puro e a alma santificada tinha condições de enxergar.Ele usava um manto esfarrapado e um lenço sujo cobrindo os ralos fios de cabelo branco e atravessava os desertos do norte africano apoiado em seu cajado em forma de serpente com olhos de rubi.
Excomungado e expulso pela Igreja Ortodoxa, ele vagava cegamente pelo mundo levando os ensinamentos sagrados para os nômades e beduínos, bandoleiros e saqueadores de templos pagãos soterrados pela areia cruel do deserto. Todos eles seres amaldiçoados, assim como o pobre profeta.
Quando Zaccarias Iscariol bateu as botas, debaixo de uma tenda feita de molambos, após uma refeição de tâmaras e uma tempestade de areia, os nômades juraram que viram surgir, entre relâmpagos rápidos, uma luminosa mão que executou uma série de gestos indescritíveis no firmamento.
Quando souberam do acontecido, três sábios do Oriente Distante peregrinaram pelo deserto e, bondosamente, embalsamaram o corpo do profeta maldito e o enterraram no deserto, dirigindo seus olhares piedosos para o céu infinitamente azul e dizendo:
- Em verdade, em verdade, vos digo, este homem era filho de Deus!
Baby da Babilõnia, data desconhecida.
A única profetiza reconhecida pela história negra foi a enigmática e, segundo os pergaminhos secretos, mortalmente sedutora, Baby da Babilônia. Fêmea fatal, dotada dos instintos mais selvagens, Baby chegou a ser considerada por alguns historiadores anônimos como uma mulher capaz de cometer atos terríveis, como o canibalismo.
Ela teria, inclusive, certa preferência por genitais masculinos fritos, grelhados, ou cozidos com legumes. Toda vez que a profetiza capturava um espécime do sexo masculino em suas muitas batalhas empreendidas contra as tribos selvagens que habitavam as Grandes Colinas, ela chegava a apalpar com carinho desmedido a volumosa genitália do macho escravizado.
Seus olhos brilhavam um brilho intenso, num misto de crueldade e gula, enquanto o pênis acariciado com tanta má intenção crescia assustadoramente na sua pequenina e sangrenta mão branca.
“Hoje teremos um banquete especial”, festejavam os generais do seu imenso exército de fanáticos seguidores que não comiam carne humana, é certo, mas que gostavam de se masturbar assistindo sua profetiza devorar gordos testículos de guerreiros mortos.
Baby teria sido morta em uma batalha, mas o seu corpo jamais chegou a ser encontrado. Depois disto, seus guerreiros se dispersaram e tornaram-se pastores no Egito Antigo.
Abdias Bitola, 1100 - 1201.
Abdias Bitola foi um ermitão idiota e mesquinho que habitou as montanhas intransponíveis e a árida terra do hoje Turcomenistão. Não tinha discípulos, nem mulheres e muito menos filhos ou parentes que o acompanhassem. Ninguém suportava viver ao seu lado por mais de alguns minutos. Ele era simplesmente odioso.
Segundo os manuscritos encontrados às margens do Mar da China, ele viveu odiado e desprezado pelos seus discípulos durante 101 anos.
Morreu depois de jejuar trinta dias e trinta noites sem dizer o motivo do sacrifício.
A última de suas muitas bobagens, disseram os seus contemporâneos desrespeitosos ao deixarem o seu corpo apodrecer solitário no deserto.
Diz a lenda que nem mesmo os abutres e os ratos quiseram devorar a sua carcaça imunda.”