O silêncio que apavora
Não estrague a minha noite com estes assuntos complexos, implorei. De nada adiantou. Logo percebi que aquela seria mais uma noite interminável, recheada de monólogos regados a vinho branco seco e que cortariam a madrugada. Nada de sexo, somente masturbação mental. Ela não me olhava nos olhos, mas eu sentia a presença dela como se a sua alma falante estivesse dentro do meu corpo. Era uma sensação esquisita. Era sempre assim quando ela começava a dissertar sobre qualquer assunto. Principalmente quando a causa dos seus monólogos era a nossa origem. Engenharia genética, para ser mais preciso. Por coincidência, ou bruxaria, nós éramos os últimos sobreviventes da famosa geração in vitro, criada no início do terceiro milênio. Gerados totalmente em tubos de vidro, nós fomos a atração do circo científico. Passamos uns dez anos rodeados de mídia por todos os lados. Superamos os clones humanos, os andróides, os seres mutantes e dezenas de outros experimentos considerados como aberrações pelos mais escrupulosos defensores da ética científica. Agora estávamos sozinhos, perdidos numa estação espacial num ano qualquer do terceiro milênio. Pendurados no espaço vazio e entediante. Não, infelizmente não era sonho ou pesadelo. Nem um set de filmagens de algum cineasta americano da extinta Hollywood. Filme de ficção científica? Antes fosse uma coisa assim, do passado. Não, agora era o presente. Um presente insólito. Presente de grego, diria um velho amigo já morto pela doença fatal do final do século 21 que dizimou meio mundo e deixou a outra metade isolada. A velha gripe espanhola, meu chapa, uma barra pesada. A morte nos rondava até mesmo na vastidão do universo. E ela agora dissertava sobre filosofia. Ainda adolescente já era um tesão intelectual. Literatura, o seu forte. Cinema, então, nem pensar em discutir, sabia de cor. Artes plásticas, uma enciclopédia. Conhecia Freud e seus labirintos mentais. Além de saber tudo sobre gastronomia, principalmente a cozinha francesa. O que estamos fazendo perdidos nesta estação espacial, perguntava eu, enquanto admirava os seus cabelos curtos, loiros. A sua boca fina, sensualíssima, se mexendo a cada sílaba. Os dentes grandes. Suas pernas longas, grossas, se remexendo a cada gole de vinho. Por um momento pensei em sexo no espaço em branco dos meus pensamentos. Um lapso de memória, ela diria, se pudesse ler os meus pensamentos eróticos. Os olhos negros fixos no meu rosto, falando agora do fim dos internautas. Meu Deus, este papo agora de Internet, até chegar na nossa origem de seres criados num laboratório em algum lugar da Terra. É o fim, pensei. Mas como o sono nunca vem, uma conversa inteligente sempre vale a pena. Sempre valeu nas fases de insônia que têm se repetido, infinitamente, na nossa rotina. Ela realmente parece ter lido os meus pensamentos. Por um momento pousou as suas mãos brancas entre as pernas, lá no v da sua calça colante preta, roçando-lhe o dedo médio, dissimuladamente. Olhou para mim, meio embriagada, porém lúcida como ninguém. De uns tempos para cá nós começamos a perder o sono. Parece maldição. Aproveitamos então para nos conhecer melhor. Ela nem sempre fala tanto assim. Depende. Às vezes, fica muda como uma porta. Gélida. O silêncio me apavora, sempre me amedrontou, desde criança, em algum lugar da Terra onde me criei. Nunca gostei do silêncio. Ela costuma ficar dias sem falar uma palavra. Fico louco. Aí, sou eu quem dispara a falar. Falo, aos berros, talvez querendo ouvir a minha própria voz na vastidão do espaço, enquanto ela me olha, distante. Entre nós sempre foi assim. Nunca falamos juntos, pois nenhum de nós suportaria. Somos dois seres extremamente falantes. Talvez seja algum efeito retardado do tubo de vidro. A criatura nascida em laboratório é uma espécie de solitário compulsivo e só consegue viver a dois se for com um igual. Disse isto a ela. Ignorou a minha opinião, mas riu muito. Talvez se lembrando de algo. Somos pessoas com uma memória fantástica. Todos sempre disseram isto. Na escola, no trabalho, em todos os lugares pelos quais passamos. Nunca nos sentimos diferentes, talvez porque vivemos juntos desde crianças. Um agarrado ao outro. Parecem gêmeos, diziam as pessoas. Vão acabar casados, cochichavam os nossos pais e tios, talvez já prevendo o futuro. E deu no que deu. Nos juntamos sem dar muita satisfação. O prazer de estarmos juntos bastava. Nunca tivemos nenhuma outra experiência amorosa e nem sexual. Só nós dois, desde crianças. Como irmãos. Uma espécie de incesto permitido. As leis de Deus ou de qualquer outra entidade não poderiam nos atingir. Nos conhecemos sexualmente desde muito cedo. Ela punha a mão no meu sexo e eu acariciava o dela, ao mesmo tempo. Lembro-me como se fosse hoje. Ela me beijando, enquanto tomávamos banho junto. Era a idade da inocência. Deu-me tesão agora lembrar disto. Foi há tantos anos... Os seus olhos negros, imitando o cenário lá fora, brilharam. A danada estava lendo os meus pensamentos. É uma merda. Somos gêmeos, não há dúvida. Ela ri, carinhosamente. Aproxima-se de mim e me beija a boca levemente. Gosta das minhas lembranças. Claro, são memórias iguais. Da nossa vida em terra temos poucas lembranças. Acho que fizemos questão de esquecer. Não me lembro mais nem dos nossos animais de estimação, que são coisas supostamente inesquecíveis. Começamos a escrever juntos um livro de memórias. Paramos não sei em qual capítulo, talvez naquele em que narramos nosso desejo enorme de vir para o espaço num momento de crise para a raça humana. Fugir da Terra era uma boa idéia, pois o planeta estava condenado. A doença de tempos ancestrais devastou lares inteiros. Levou a maioria dos nossos parentes. Nos deixaram sozinhos, ela dizia, num misto de melancolia e ironia. Passamos toda a nossa vida grudados um ao outro. É algo natural em nós, seres in vitro. Fetos alimentados por proteínas artificiais durante nove meses devem ficar sensíveis a este tipo de coisa, costumavam explicar os geneticistas do nosso tempo. Apesar disto, cada um tinha seu espaço, suas tarefas e preferências. Ela detestava dadaísmo e surrealismo. Eu odiava os girassóis do louco Van Gogh que ela amava de paixão, além dos impressionistas que eu sempre desprezei. Esta mulher é o máximo, dizia eu para o meu próprio rosto transfigurado nos espelhos da nave, cada vez que nós nos enfrentávamos em fervorosos debates culturais. Poesia pura. Acredito que seja este o material que compõe o seu belo corpo humano. Penso nisso enquanto a observo tirar a roupa. Ela gosta de ficar nua, assim de repente. Exibindo-se para mim. Talvez para ela própria neste deserto cósmico. Nua, ela fica cheia da luz forte que nos ilumina no interior da estação. Iluminado, o seu corpo é algo fenomenal. Ela sorri. Continua a falar, só que agora de forma melodiosa. Conta estórias como se fosse uma espécie de ópera. Eu ali, hipnotizado, tentando decifrar seus leves movimentos de bailarina solitária. Constelações nos observam, longe. E ela, com a sua voz aveludada, continua a falar. O vinho acabou. O nosso oxigênio está quase no fim. Lá fora, o silêncio pavoroso parece que nunca vai acabar.